sexta-feira, 18 de junho de 2010

MARROCOS 2010


Tanger
Dez anos passaram desde a minha última ( e única ) viagem a Marrocos. Nessa altura o novo rei, Mohamed VI acabava de subir ao trono e com ele todo um balão de esperança para tirar o país da estagnação económica em que se encontrava. O seu pai, Hassan II, poucas ou nenhumas saudades tinha deixado no povo. O Marrocos daquela altura era um país em agonia económica vivendo de uma agricultura e pescas, rudimentar, das receitas dos emigrantes, do turismo ( que era quase perseguido pelos comerciantes em estado de desespero na expectativa de fazerem algum, pouco, negócio ) e pelos negócios ilícitos, com a droga à cabeça, e tráfico de pessoas para a Europa, a grande maioria destes negócios explorados por europeus.
Pelas ruas de Tanger e nos terraços da cidade era comum verem-se negros com olhares de desespero a lutar pela sobrevivência, diariamente, enquanto esperavam a hora de darem o salto para o sonho desejado. A Europa era a terra prometida, o fim que tinha justificado todos os meios, todos os esforços e todos os riscos. Ali estava ela, finalmente, a um pequeno passo, apenas dividida pelas águas do estreito. Poucos quilómetros de água mas uma gigante barreira para o salto final.
O Marrocos de hoje é um Marrocos diferente, disso não restam muitas dúvidas. O novo rei abriu o país ao Ocidente, que é como quem diz ao dinheiro do capitalismo, com tudo o que isso tem de bom e de mau, e empreendeu uma verdadeira operação charme para criar uma nova imagem aos olhos do mundo.
Tanger, a grande porta de entrada, foi assim uma das cidades escolhidas para construir a imagem do novo país. A praia da baía, outrora poluída e perigosa ( por causa do crime ) aparece agora com um visual ao melhor estilo Copacabana magrebina. Da antiga linha de comboio fez-se um calçadão enorme com palmeiras, cafés e discotecas, a construção imobiliária disparou por todo o lado e toda a antiga imagem de emigrantes ilegais que enchiam a cidade foi, verdadeiramente, varrida ( dizem ) para a fronteira da Mauritânia.
Nesta pequena viagem só estive no norte ( Tanger, Arsila e Tetouan ), mas o que vi foi um país diferente. A vertigem da Europa, do consumo e do dinheiro tomou conta do país. As pessoas estão mais contentes ( dizem ) e confiantes no futuro. Como é que um país com uma matriz tão tradicional e ortodoxa vai conseguir conciliar-se com este lado perverso do ocidente é a grande pergunta.

O meu fascínio por Tanger começou na literatura, muito por culpa do Paul Bowles que, como é sabido, fez desta cidade o seu local de residência a partir de 1947, ( espero não estar enganado na data ). Naquela altura Tanger era uma cidade franca onde os produtos e negócios ( lícitos ou ilícitos ) circulavam a seu belo prazer.
Essa circunstância e o facto de ali desembarcar um sem número de personagens famosos acabou por fazer da cidade uma espécie de local de culto, onde os ocidentais ( principalmente americanos que fugiam do vazio da América futurista e modernista dos anos cinquenta ) podiam encontrar o conforto ocidental paredes meias com o mais puro exotismo do imaginário dos viajantes oitocentistas e ainda uma total liberdade e libertinagem para comportamentos e tendências mal vistas nas suas terras.
Dizem que foi Gertude Stein quem recomendou a cidade a Paul Bowles. Depois dele outros se seguiram: William Burroughs, Kerouac, Alain Ginsberg, Matisse, para não falar de todos os gurus do rock dos anos 70, com os Rolling Stones à cabeça.
Já na minha primeira visita eu havia procurado o rasto desses anos dourados e desta vez também não foi diferente. A escolha do alojamento voltou a recair no mítico hotel Muniria, onde Kerouac terá ficado hospedado aquando da sua passagem pela cidade ( no quarto número 4 ). Por baixo, do hotel, no bar Tanger inn, existem algumas fotos que alimentam um pouco a ideia de que a história terá mesmo acontecido.
No Zocco Chico lá está o café onde Burroughs terá escrito o Nacked Lunch e onde ele e os amigos terão passado muitas horas das suas vidas. O café embora seja de 1813 já pouco tem que o distinga dos restantes novos cafés.
O Grande teatro Cervantes, com a sua fachada arte nova, tantas vezes referido no “ Deixai a Chuva Cair “ continua ainda de pedra e cal a caminho da mais completa ruína.
O Grand Hotel Ville de France, onde Delacroix e Matisse se hospedaram teve melhor sorte e prepara-se para se tornar numa espécie de condomínio privado Ville de France, ou qualquer coisa parecida.
O Hafa Café continua a ser o local de referência para as últimas horas do dia, para quem quiser sonhar com a Tanger de outros tempos e embriagar-se com o azul infinito do Atlântico.
As campas fenícias, com mais de dois mil anos, escavadas na rocha, logo ao lado do Hafa Café continuam atulhadas de latas de coca cola e sacos de lixo, convivendo paredes meias com o Atlântico sem fim.
Depois há toda uma cidade que fervilha do primeiro ao último minuto do dia. Principalmente os finais do dia continuam a ser momentos particularmente mágicos. Pelas ruas da medina alguns, poucos, falsos guias vendem-nos histórias de casas onde Tennessee Williams, Yve Saint Laurent, Bowles, Matisse e outros que tais terão vivido. Histórias repetidas à exaustão para estrangeiro ouvir, que parecem já não dizer absolutamente nada ao mais comum dos cidadãos da cidade.
Outra coisa boa de Tanger continua a ser a sua localização, seguramente um bom ponto de partida para toda as cidades à volta a começar pela Arsila ( que a nós portugueses tanto nos diz ), passando por Tetouan ( com a sua Medina património mundial da UNESCO ), Chefchauen às portas do Rif e por fim a eterna Ceuta, onde a aventura portuguesa dos descobrimentos terá começado no longínquo ano de 1415.
Os anos passam, as cidades vão mudando, mas o encanto é sempre o mesmo.

4 comentários:

Henrique Vogado disse...

Muito interessante o post.
Ando a ler o "Deixa a chuva caír" e a "viajar" por Tânger.
Os desenhos estão muito bons.

Boas viagens!

Anônimo disse...

Rui,

vim através de um comentario seu no 100cabeças do Silvares! Foi o comentario mais lúcido que li sobre a morte de Saramago! Parabéns! E chegando aqui encontro seus desenhos que são ótimos, também!
Forte abraço!

Rui Sousa disse...

Eduardo, venha sempre que quiser .... e agradeço o comentário.

RICARDO garopaba BLAUTH disse...

alo RUI SOUSA

acabaste de conquistar um admirador.

li o texto que fizeste e que meu vizinho Eduardo postou. Disse ist por telefone mas não resisti e deixei também comentário lá.

como sou um jovem/velho guri curioso vim conferir quem era este ....."rui sousa"......

prá minha surpresa e alegria aqui estou maravilhado com teus desenhos..........

vou "xeretear" por aqui mais vezes

abraços
e siga em frente......

RICARDO garopaba BLAUTH